29.8.05
Eu tenho dois grandes medos nessa vida. Mas grandes MESMO!
O primeiro é cair em público, herança dos meus tenros tempos de infância, quando, no horário do recreio, tropecei no cadarço do tênis bamba e tomei aquele fenomenal tombo no meio do pátio e na frente de tooooooooodas aquelas crianças malévolas e cruéis que não hesitaram em cair na gargalhada. A bobona aqui levantou sem chorar, mas com um bico DEEEEEESSE tamanho! O roxo do tombo foi-se mas o trauma ficou. E até hoje, o pavor se instala a qualquer indício de queda.
O segundo maior medo veio já com a emancipação. Um medo um tanto heterodoxo, eu diria. É o medo que eu tenho de parar o carro em cruzamentos.
Não, não é aquela paradinha que você dá para olhar a via que vai e vem, antes de atravessar a rua. É o medo do maldito carro da frente parar, o semáforo fechar e você ficar lá, no meio da avenida, atrapalhando todo o trânsito, BEM NO CRUZAMENTO.
Provida de tal fobia, passei a ser muito mais cuidadosa durante minhas trajetórias urbanas. Nunca olhei para o carro da frente, muito menos para o que estava à frente dele. Meu olhar sempre estava fixo lá no outro carro, atento a qualquer luz de freio disparada por ele, pronta para parar, metros antes de qualquer intersecção de ruas.
É um olhar de frações de segundo: o carro pára, o outro pára, o da frente pára e eu já estou lá, na reduzida, pé no freio, olhando atentamente o semáforo. Se estiver verde, continuo seguindo, a dez por hora, até me sentir segura novamente na rua que é só minha, sem nenhuma outra entrando no meio. Se amarelar, eu freio - mesmo sabendo que, por muitas vezes, poderia ter ido. Vai que o carro da frente pára de novo?
E assim, prossegui por toda a minha existência de habilitada-categoria-B, sendo uma boa motorista, seguindo as leis do trânsito e praticando imprudências só durante a madrugada. De uma certa forma, esse comportamento quase exemplar fazia com que eu me sentisse no direito de maldizer aqueles que não eram tão prudentes assim.
Neste sábado, voltando da aula, fazia meu trajeto de sempre: Avenida Angélica, Rua Sergipe, Consolação, Avenida Paulista...
...Avenida Paulista!
A Avenida Paulista, como muitos sabem, é cartão-postal de São Paulo. E como todo cartão-postal, é vítima de gravação de novela das oito. Não adianta! Todo sábado aqueles putos estão fazendo gravação de externa em plena Paulista! Vira tudo uma zona, um caos... Aquela fila de carros em procissão atrás da equipe de gravação...
E lá estou eu, mais uma vez, fazendo parte daquela epopéia, já desencanada de tentar ultrapassar porque lá na frente tem o seu polícia que não deixa ninguém passar. Aquela peregrinação só acaba ali, em meados da Brigadeiro - eu já até conheço o percurso. Todo sábado é a mesma coisa...
De repente, o trânsito começou a andar e eu me empolguei! Engatei terceira, quarta... já estava feliz e pimpona, rumo ao bairro Paraíso quando o carro da gravação parou e com ele, todos os outros que estava atrás. Inclusive, o automóvel que estava bem na minha frente. E foi justamente naquele momento que eu perdi a maldita fração de segundo...
Lá estava eu, acuada, NO MEIO DE UM CRUZAMENTO DA AVENIDA PAULISTA.
O farol ainda estava verde e eu torcia para que aqueles malditos da novela das oito voltassem a andar com o carro, eu precisava sair daquele cruzamento! EU PRECISAVA SAIR DAQUELE CRUZAMENTO!!!
À minha esquerda, a calçada. À minha direita, logo à frente, no meu único refúgio, uma maldita Brasília amarelo-calcinha parada...
Minha mão começou a tremer... A testa começou a suar... O coração estava batendo mais forte... Era algo frenético - eu alternava meu olhar entre o semáforo ainda verde, o maldito carro da frente, a Brasília e a placa “NUNCA FECHE O CRUZAMENTO”. Semáforo-carro-Brasília-placa-semáforo-carro-Brasília-placa-semáforo-carro-Brasília-SEMÁFORO-SEMÁFORO-SEMÁFORO!!!
O amarelo. O maldito amarelo, cor primária dos infernos, que eu havia acabado de estudar havia poucas horas... O amarelo, imprecado branco que perdeu a pureza segundo algum rensascentista que não usava preto nem para fazer sombra!
Olhei pela janela do passageiro. Conseguia sentir a fúria dos motoristas que aguardavam sedentos em transpor aquele cruzamento, já olhando para mim e vociferando em suas mentes todos os gentis adjetivos que são atribuídos a mulheres no trânsito. Eu estava aterrorizada, acelerando o carro sem sair do lugar, como forma de demonstrar que eu também não queria estar ali!
- Ai, meu Deus! Eu quero sair daqui! Eu quero sair daqui! ME TIRA DAQUIIIIIIIIII!!!
Enfim, o semáforo ficou vermelho. E eu ainda estava lá: estática, no meio de um cruzamento da Avenida Paulista.
- Maldita novela das oito! MALDITA NOVELA! MALDITAAAAAAAAAAA!!!
Os carros começaram a vir em minha direção...
Fecha os vidros, Endora! Fecha os vidros! Faz de conta que não é com você! Nada disso está acontecendo! Pense que você é uma plantinha... Uma plantinha... Eu sou uma samambaia! EU SOU UMA SAMAMBAIA!!!
- TINHA QUE SER MULHER MESMO!
- AÊ DONA MARIA!
- OLHA A PLACAAAAAA!
- VOLTA PRO FOGÃO!!!
O quê? "VOLTA PRO FOGÃO"? Aí já é demais! Abri o vidro, botei a cabeça para fora e gritei:
- Fogão é lugar de mulher como a sua, palhaço! VAI PRO INFERNO! Você acha que eu tô gostando de estar aqui???
Voltei pra dentro do carro, puxei o freio de mão, cruzei os braços. Respirei fundo. Do lado de fora, no cruzamento, buzinas e mais buzinas... Um carro querendo passar do outro, para não ter de ficar parado atrás de mim. Minha mãe, coitada... Foi xingada até a décima nona geração...
Na gravação, uma briga simulada entre os atores. Trânsito ainda parado.
Finalmente, o outro semáforo fechou e meia dúzia de remanescentes ainda passavam por mim, desviando do meu carro e proclamando suas delicadezas.
Abri o vidro. O trânsito andou. Consegui sair daquela faixa amarela e respirei com alívio, depois de quase oito minutos de tensão intensa... Para variar, o semáforo fechou de novo e aquele maldito carro da novela continuava lá. Mas agora, eu já estava tranqüila. Estava no meu espaço de direito na rua. Ninguém mais ia poder me chamar de Dona Maria nem me mandar para o fogão.
No farol seguinte, já parei com a antecedência padrão e ouvi uma buzinadinha do carro ao lado. Olhei. Era um garoto da minha sala na EPA que, apesar de eu não me lembrar do nome, sempre sai para fumar comigo quando a aula fica chata. Enquanto eu acenava, ele baixou o vidro e disse, com uma risadinha sarcástica:
- Olha só! Vou falar para todo mundo lá na EPA que você é uma morena de parar o trânsito!
Por pouco, o aceno quase transformou-se em quatro dedos abaixados e um dedo médio à mostra. Preferi manter a boa e velha educação. Abri um sorriso e com toda a delicadeza do mundo, falei:
- Vai pro inferno, amor, vai!
O primeiro é cair em público, herança dos meus tenros tempos de infância, quando, no horário do recreio, tropecei no cadarço do tênis bamba e tomei aquele fenomenal tombo no meio do pátio e na frente de tooooooooodas aquelas crianças malévolas e cruéis que não hesitaram em cair na gargalhada. A bobona aqui levantou sem chorar, mas com um bico DEEEEEESSE tamanho! O roxo do tombo foi-se mas o trauma ficou. E até hoje, o pavor se instala a qualquer indício de queda.
O segundo maior medo veio já com a emancipação. Um medo um tanto heterodoxo, eu diria. É o medo que eu tenho de parar o carro em cruzamentos.
Não, não é aquela paradinha que você dá para olhar a via que vai e vem, antes de atravessar a rua. É o medo do maldito carro da frente parar, o semáforo fechar e você ficar lá, no meio da avenida, atrapalhando todo o trânsito, BEM NO CRUZAMENTO.
Provida de tal fobia, passei a ser muito mais cuidadosa durante minhas trajetórias urbanas. Nunca olhei para o carro da frente, muito menos para o que estava à frente dele. Meu olhar sempre estava fixo lá no outro carro, atento a qualquer luz de freio disparada por ele, pronta para parar, metros antes de qualquer intersecção de ruas.
É um olhar de frações de segundo: o carro pára, o outro pára, o da frente pára e eu já estou lá, na reduzida, pé no freio, olhando atentamente o semáforo. Se estiver verde, continuo seguindo, a dez por hora, até me sentir segura novamente na rua que é só minha, sem nenhuma outra entrando no meio. Se amarelar, eu freio - mesmo sabendo que, por muitas vezes, poderia ter ido. Vai que o carro da frente pára de novo?
E assim, prossegui por toda a minha existência de habilitada-categoria-B, sendo uma boa motorista, seguindo as leis do trânsito e praticando imprudências só durante a madrugada. De uma certa forma, esse comportamento quase exemplar fazia com que eu me sentisse no direito de maldizer aqueles que não eram tão prudentes assim.
Neste sábado, voltando da aula, fazia meu trajeto de sempre: Avenida Angélica, Rua Sergipe, Consolação, Avenida Paulista...
...Avenida Paulista!
A Avenida Paulista, como muitos sabem, é cartão-postal de São Paulo. E como todo cartão-postal, é vítima de gravação de novela das oito. Não adianta! Todo sábado aqueles putos estão fazendo gravação de externa em plena Paulista! Vira tudo uma zona, um caos... Aquela fila de carros em procissão atrás da equipe de gravação...
E lá estou eu, mais uma vez, fazendo parte daquela epopéia, já desencanada de tentar ultrapassar porque lá na frente tem o seu polícia que não deixa ninguém passar. Aquela peregrinação só acaba ali, em meados da Brigadeiro - eu já até conheço o percurso. Todo sábado é a mesma coisa...
De repente, o trânsito começou a andar e eu me empolguei! Engatei terceira, quarta... já estava feliz e pimpona, rumo ao bairro Paraíso quando o carro da gravação parou e com ele, todos os outros que estava atrás. Inclusive, o automóvel que estava bem na minha frente. E foi justamente naquele momento que eu perdi a maldita fração de segundo...
Lá estava eu, acuada, NO MEIO DE UM CRUZAMENTO DA AVENIDA PAULISTA.
O farol ainda estava verde e eu torcia para que aqueles malditos da novela das oito voltassem a andar com o carro, eu precisava sair daquele cruzamento! EU PRECISAVA SAIR DAQUELE CRUZAMENTO!!!
À minha esquerda, a calçada. À minha direita, logo à frente, no meu único refúgio, uma maldita Brasília amarelo-calcinha parada...
Minha mão começou a tremer... A testa começou a suar... O coração estava batendo mais forte... Era algo frenético - eu alternava meu olhar entre o semáforo ainda verde, o maldito carro da frente, a Brasília e a placa “NUNCA FECHE O CRUZAMENTO”. Semáforo-carro-Brasília-placa-semáforo-carro-Brasília-placa-semáforo-carro-Brasília-SEMÁFORO-SEMÁFORO-SEMÁFORO!!!
O amarelo. O maldito amarelo, cor primária dos infernos, que eu havia acabado de estudar havia poucas horas... O amarelo, imprecado branco que perdeu a pureza segundo algum rensascentista que não usava preto nem para fazer sombra!
Olhei pela janela do passageiro. Conseguia sentir a fúria dos motoristas que aguardavam sedentos em transpor aquele cruzamento, já olhando para mim e vociferando em suas mentes todos os gentis adjetivos que são atribuídos a mulheres no trânsito. Eu estava aterrorizada, acelerando o carro sem sair do lugar, como forma de demonstrar que eu também não queria estar ali!
- Ai, meu Deus! Eu quero sair daqui! Eu quero sair daqui! ME TIRA DAQUIIIIIIIIII!!!
Enfim, o semáforo ficou vermelho. E eu ainda estava lá: estática, no meio de um cruzamento da Avenida Paulista.
- Maldita novela das oito! MALDITA NOVELA! MALDITAAAAAAAAAAA!!!
Os carros começaram a vir em minha direção...
Fecha os vidros, Endora! Fecha os vidros! Faz de conta que não é com você! Nada disso está acontecendo! Pense que você é uma plantinha... Uma plantinha... Eu sou uma samambaia! EU SOU UMA SAMAMBAIA!!!
- TINHA QUE SER MULHER MESMO!
- AÊ DONA MARIA!
- OLHA A PLACAAAAAA!
- VOLTA PRO FOGÃO!!!
O quê? "VOLTA PRO FOGÃO"? Aí já é demais! Abri o vidro, botei a cabeça para fora e gritei:
- Fogão é lugar de mulher como a sua, palhaço! VAI PRO INFERNO! Você acha que eu tô gostando de estar aqui???
Voltei pra dentro do carro, puxei o freio de mão, cruzei os braços. Respirei fundo. Do lado de fora, no cruzamento, buzinas e mais buzinas... Um carro querendo passar do outro, para não ter de ficar parado atrás de mim. Minha mãe, coitada... Foi xingada até a décima nona geração...
Na gravação, uma briga simulada entre os atores. Trânsito ainda parado.
Finalmente, o outro semáforo fechou e meia dúzia de remanescentes ainda passavam por mim, desviando do meu carro e proclamando suas delicadezas.
Abri o vidro. O trânsito andou. Consegui sair daquela faixa amarela e respirei com alívio, depois de quase oito minutos de tensão intensa... Para variar, o semáforo fechou de novo e aquele maldito carro da novela continuava lá. Mas agora, eu já estava tranqüila. Estava no meu espaço de direito na rua. Ninguém mais ia poder me chamar de Dona Maria nem me mandar para o fogão.
No farol seguinte, já parei com a antecedência padrão e ouvi uma buzinadinha do carro ao lado. Olhei. Era um garoto da minha sala na EPA que, apesar de eu não me lembrar do nome, sempre sai para fumar comigo quando a aula fica chata. Enquanto eu acenava, ele baixou o vidro e disse, com uma risadinha sarcástica:
- Olha só! Vou falar para todo mundo lá na EPA que você é uma morena de parar o trânsito!
Por pouco, o aceno quase transformou-se em quatro dedos abaixados e um dedo médio à mostra. Preferi manter a boa e velha educação. Abri um sorriso e com toda a delicadeza do mundo, falei:
- Vai pro inferno, amor, vai!