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4.2.07


A insociável vida de um vegetariano


Depois de anos de esbórnia, esbaldando-se em churrascos sangrentos, linguicinhas calabresa apimentadas, churrascos-grego e carne de panela feita pela vó, eis que você engaja-se por uma causa animal e entabula uma nova fase da sua vida: torna-se um vegetariano! Aquela vida mundana regada a carne vermelha ficou para trás! “E frango?”. De jeito nenhum! “Nem peixe?”. Vá de retro, satanás! Você agora ama os animais e por isso, resolveu não comê-los. Nunca mais!

A causa é nobre, você passa a sentir-se como um ser humano melhor, mas já lhe aviso, caro amigo ou amiga: ser vegetariano é um ato de coragem neste mundo tão cruel e carnívoro! Você passará por dificuldades, perrengues impronunciáveis, sofrerá preconceitos, será marginalizado pela sociedade e assim como um nerd de doze anos, somente será feliz e aceito entre aqueles da mesma casta que você!

A discriminação começa em casa, quando você reune sua família e faz a revelação. É quase como assumir a homossexualidade, declarar-se gay na hora do jantar. Ao final do discurso, a descrença familiar é completa: sua mãe, exímia conhecedora dos seus hábitos e gostos alimentares, olha sorrateiramente para o seu pai e diz: “Ih, isso aí não dura uma semana!”. Seu irmão sorri satisfeito, já contabilizando os bifes a mais que terá no prato e seu pai, como sempre, balbucia enquanto ainda mastiga: “Isso é tudo culpa da televisão!”.

Completamente desacreditado pela sua família, as semanas que seguirão serão as mais terríveis: você chegará em casa e sentirá o cheiro sedutor do bife acebolado, aquele, aquele que você adorava, todo tostadinho (ou malpassado, de acordo com a sua predileção) ali, estendido na frigideira sobre a mesa te dizendo: “Olha como eu sou gostoso!!!”. A boca saliva, seu estômago comunica-se como nunca com você, mas este é o momento de respirar fundo e, assim como o alcoólatra, dizer: “só por hoje – eu não vou comer carne!”.

Seus pais continuam com a tortura e no domingo o molho do macarrão é à bolognesa! Todos olham satisfeitos para você, que senta-se à mesa com lágrimas nos olhos e pensando, puto da vida: “Mas por que raios não podia ser um molho quatro queijos, PORCA MISÉRIA???”. Mesmo com o coração apertado (e o estômago mais ainda), você renega o banquete e se concentra em devorar a salada maionese sob os olhares reprovadores da mãe. E assim passam as primeiras semanas até que eles percebem que você está convicto da sua nova condição alimentar e passam a comprar vidros de milho e de palmito aos montes, sem contar as batatas, claro.

Passada a fase ruim do aculturamento da família, vem a fase pior: o aculturamento dos amigos. Principalmente se seus amigos são beberrões de primeira, consumidores vorazes de animais mortos (vejam como eu já falo como uma perfeita vegetariana) cujos eventos organizados por eles baseiam-se no par cerveja-churrasco. Ai de você se largar um dos dois! Mas você largou! Sim, caro amigo, você foi macho o suficiente para dizer “Não!” e largou a carne! Atônitos, todos olham para você ali, parado ao lado do prato de farofa e empunhando um garfo com uma suculenta alface dizendo: “Eu não como mais carne!”. Todos perguntarão o porquê e, já vá se acostumando, você terá de explicar isso pelo resto da sua vida vegetariana!

Depois dos olhares tortos e desconfiados, todos voltarão para seus espetos, meter-se-ão em grupos carnívoros e você ficará lá, jogado, de lado, menosprezado, depreciado, completamente vilipendiado, tendo como única companhia a salada vinagrete.

Meses depois, você encontra o Guilherme Augusto, ali no metrô Ana Rosa, “Oi Guilhermão, beleza?”. “Fala seu sumido, como é que estão as coisas?”. Conversa vai, conversa vem, você pergunta do pessoal e o Guilherme Augusto te conta que rolou um churrasco no sábado passado, estavam todos lá: o Fernando, a Marcela, o João, o Marco Antônio, a Lucinha... “Porra cara! A Lucinha!!! Faz um tempão que eu não vejo aquela menina!!!”. “Pois é, ela estava lá no churrasco”. “Pôxa, por que vocês não me chamaram, fiquei em casa fazendo nada...”. E aí vem a frase recheada de escárnio: “Ah cara, mas você não come carne, sabe como é...”.

Quer dizer que quando eu comia carne eu era um bom amigo? Quer dizer então que eu era um ser humano melhor? Por que raios tudo tem de ser feito a base de churrasco!? Vou cozinhar o seu cachorro e dar ele para você comer, seu maldito! Ou melhor: eu vou cozinhar você e fazer um ensopado dessa carne mole e gordurosa da sua pança, acompanhada de batata, milho e palmito!

Mas você não fala nada disso. Você engole seco e tal como Charlie Brown, suspira fundo e pensa um “Que puxa!”. Despede-se do amigo, senta (só de raiva) no banco cinza do metrô e pensa: “será que vale a pena?”. Nesse momento, você vê uma propaganda logo acima da janela do trem dizendo “meat is murder” e a coragem e a esperança retornam a esse seu palpitante coraçãozinho!

Por fim, chega a hora da fase crucial: o aculturamento dos colegas de trabalho. Estes são obrigados a agüentar você, assim como você a eles. Mas o pior é que o dia que você escolheu para iniciar sua epopéia vegetal é justamente o dia em que a área comercial ganhou aquele contrato de milhões, o presidente da empresa ficou muito feliz e decidiu pagar o almoço de todo mundo no restaurante mais caro da região. Por coincidência, uma churrascaria. Você para e pensa que o Paulo Coelho é um baita mentiroso porque a porra do universo não está conspirando a seu favor e consola-se com a possibilidade de se esbaldar nas sobremesas. Mas antes disso, você terá de passar pela prova desgracenta da mesa com o indicador verde.

A todo instante aqueles infelizes de galochas e com um falso ar gaúcho passam por você, praticamente esfregando o espeto na sua cara dizendo: maminha-linguiça-costela-picanha? Seu único desejo é que estes homens do mal sumam da sua frente, mas o verde indica que aquela mesa QUER CARNE e você sai de lá correndo em busca de salada. Vai meu filho, enfia essa alface goela abaixo! Repita para você mesmo: eu amo brócolis! Pense positivo: acelga tem fibra e auxilia o intestino! Volte para a mesa com o prato repleto. Assim, ninguém enche seu saco nem pergunta “não vai comer carne?”.

O pior é ver o espeto de coração de galinha. Depois de algum tempo sendo vegetariano você olhará para aquele imenso garfo repleto dos minúsculos músculos e calculará quantas pobrezinhas tiveram sua vida e sua existência sacrificadas em nome de um deleite sanguinário dos humanos. Quantos pintinhos ficaram órfãos! Quantos galos choram por suas viúvas! Gente sem coração! E galinhas também.

Eis que a carnificina acaba, você volta para o seu posto de trabalho, olhar perdido, miocárdio partido, até que alguém pergunta inocentemente sobre sua aparente apatia e você não economiza na hora de defender os pobres animaizinhos (em especial, as galinhas).

Dez anos se passaram e você continua impassível diante dos filés. Seu grupo de amigos mudou. Agora, você só se relaciona com gente macrobiótica ou militante do PETA. Pensa seriamente em invadir a faculdade de medicina da USP para libertar os pobres bichinhos utilizados como cobaias nas aulas de cirurgia. Você foi demitido depois de fazer um discurso inflamado contra o abate de animais justamente naquele jantar onde o dono de um famoso frigorífico acabava de fechar mais um contrato com a empresa. Por fim, seus pais continuam lhe acolhendo com muito amor, carinho, milho verde e bife acebolado. Dois no prato do seu irmão, claro!